A Itália deu um passo raro — e altamente simbólico — ao anunciar que descendentes de italianos de países como Brasil, Argentina e Venezuela poderão trabalhar no país sem depender das cotas anuais tradicionais. Mas, se o gesto parece afetivo, a motivação é bem pragmática: o país simplesmente não tem trabalhadores suficientes.
A decisão surge em um momento em que a Itália enfrenta um dos maiores desafios demográficos da Europa: população em queda, baixa natalidade e setores inteiros a funcionar com mão de obra insuficiente. Resultado? O Governo decidiu recorrer a quem, no passado, partiu — ou a seus descendentes — para preencher vagas que já não encontram quem aceite ocupar.
A crise: envelhecimento rápido e vagas que sobram
A situação demográfica italiana já é considerada crítica. A Itália tem uma das populações mais idosas do mundo e, segundo o próprio governo, faltam trabalhadores em setores essenciais, como:
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Agricultura
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Turismo e hotelaria
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Saúde e cuidados
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Construção civil
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Serviços gerais
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Indústria leve
O problema não é novo, mas atingiu um ponto de urgência. Empresas relatam que não conseguem contratar, municípios do interior estão a perder habitantes rapidamente e serviços básicos começam a ser afetados.
Por isso, a medida não é apenas um convite simpático aos descendentes: é uma estratégia de sobrevivência económica.
A grande contradição: Meloni pregava endurecimento migratório… agora precisa abrir as portas
O novo decreto também expõe uma contradição difícil de ignorar: Giorgia Meloni chegou ao poder com um discurso firme contra imigração, prometendo fronteiras mais rígidas, controle absoluto de entradas e políticas duras contra estrangeiros sem documentação. No entanto, confrontado com a realidade brutal do mercado de trabalho — e com uma população que envelhece rápido demais — o governo viu-se forçado a fazer exatamente o oposto: abrir a Itália para trabalhadores estrangeiros, ainda que descendentes. Na prática, a Itália descobriu que ideologia não colhe tomate, não cuida de idosos e não mantém hotéis e fábricas a funcionar. Diante do risco económico real, Meloni cede ao pragmatismo: quando faltam trabalhadores, fechar portas deixa de ser opção.
O que muda na prática — e para quem muda
O novo decreto publicado em novembro de 2025 permite que descendentes de italianos de sete países — incluindo o Brasil — obtenham visto de trabalho fora do sistema de cotas (Decreto Flussi).
Ou seja:
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Não é preciso disputar vagas limitadas por quota anual.
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Basta comprovar a ascendência italiana.
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E apresentar um contrato de trabalho válido na Itália.
A lógica é simples: se há milhões de descendentes espalhados pelo mundo, por que não aproveitar esse potencial humano para reequilibrar o país?
O movimento também reconhece a enorme diáspora italiana — e busca reconectar-se com ela num momento em que a Itália já não consegue manter sua força produtiva com a população atual.
Para o descendente: oportunidade real, mas exige preparação
A nova porta aberta não significa entrada automática. É preciso:
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Certidões que comprovem a linha familiar até o antepassado italiano;
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Um contrato de trabalho com empresa italiana;
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Emissão do visto e posterior permesso di soggiorno;
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Adaptação cultural e linguística.
Ou seja: é oportunidade, mas não “atalho”. A diferença é que agora o caminho existe, sem a barreira das cotas.
A grande ironia histórica: quem um dia saiu, agora é chamado de volta
Do final do século XIX até meados do século XX, milhões de italianos emigraram para o Brasil, Argentina, EUA e outros países fugindo de crises económicas.
Agora, mais de 100 anos depois, a história se inverte:
é a Itália que precisa daqueles que partiram — ou melhor, dos seus descendentes.
É uma espécie de “ciclo completo” da migração.
Mas desta vez, não por fome ou desespero — e sim por uma necessidade moderna: não há quem trabalhe.
Uma decisão pragmática com impacto emocional
A medida tem um peso emocional óbvio para quem carrega um sobrenome italiano. Mas, no fundo, é uma política estatal altamente estratégica:
✓ recuperar população jovem
✓ fortalecer setores que não encontram mão de obra
✓ estimular a economia interna
✓ reduzir o risco de colapso demográfico
Para milhões de descendentes, é uma oportunidade de recomeço.
Para a Itália, é uma tentativa de não parar.


